sábado, 16 de maio de 2015

Mickey - Um Ano de Saudade

Quase que me lembro de ter prometido em escrita de sangue, que este "Pretérito Perfeito" faria jus ao verbo e ao adjectivo, aqui só se recordariam boas memórias e a saudade seria sempre maquilhada com pó de humor.
Mas não poderia deixar passar esta data.

Faz hoje um ano que, ao chegar a casa do trabalho, percebi que a minha intuição mais negra estava certa naquilo que tinha sido um prognóstico para lá de reservado:
O Mickey não viria esperar à porta porque o Mickey estava morto.

08 de Março de 1998

Estava no meu quarto, no andar de cima, quando o meu irmão e o meu pai chamaram por mim.
Quando espreitei, ao colo do meu pai, estava uma pequena bolinha de pelo branco, com uns olhos castanhos escuros que me olhavam com a mesma surpresa que os meus olhavam os dele.
Um caniche bebé.
Ou perto disso.
Um pequeno urso polar?
Um pedaço de algodão doce?

Ficou a chamar-se Mickey, mas também o chamei "Nuvem", "Miqueijinho Fresco", "Ovelha" e outras mariquices que dizemos quando estamos encantados.

Foram 16 anos de companheirismo que valeram cada segundo, uma amizade ímpar, uma presença simpática, um anjo de quatro patas.

Até Maio de 2014 acompanhou a maior parte dos meus anos de adulto, chegou no ano da Expo, e permaneceu em exposição permanente para lá da viragem do século, andou no meu primeiro carro, já cá estava quando nasceu o Daniel, resistiu aos dias difíceis da hospitalização do meu pai mesmo tendo perdido o apetite e a alegria no olhar, resistiu à hospitalização da minha mãe e estava de novo aqui, para me receber, quando eu próprio regressei de cinco semanas de hospital.
As nossas fraquezas humanas, a perecibilidade dos nossos corpos, antagonizava com aquilo que parecia ser a eternidade do nosso fiel companheiro.
Mas não era nada assim.

Nos dois últimos anos já o Mickey estava minado pela doença silenciosa que viria a levá-lo e a primeira metade de Maio de 2014, até ao fatídico dia 16, foi insuportável.
A segunda metade também.

As Saudades que Não Morrem

A memória jamais será apagada, mas as saudades foram mitigadas pelo tempo.
Mas ainda mexem.

Tenho saudades de o ouvir ladrar ao meio-dia, quando alguém tocava à campainha, na alegria de ir para a mesa ao jantar, porque ele bem sabia que a essa hora era quase sempre carne.

Tenho saudades de o ver de pé, patas dianteiras nas minha pernas, enquanto esperava por um naco de carne, correndo logo a seguir para outra cadeira, para mais uma porção e assim sucessivamente.

Tenho saudades de o soltar na rua, de vê-lo farejar cada canto, de quando em vez correr atrás de alguém que não gostava, de pouco ligar quando aparecia alguém de quem gostava, de ver a Princesa a passeá-lo e de tudo parecer-me perfeito, belo e desejava que o tempo parasse, como se fosse possível imortalizar aquela cena como uma fotografia, um quadro, ou aqueles globos de vidro com papelinhos dentro.

Tenho saudades de deitar a cabeça naquele pelo branco, de o ver sem ele, como uma cabrita do campo, os olhos grandes que engoliam a casa, as borrachinhas das patas, o penacho peludo da cauda, a virilidade de uma quinta pata que orgulhava os seus donos, a meiguice, as corridas desenfreadas, o modo como se torcia quando afagávamos a parte de trás do dorso, o modo como percebia que no dia a seguir viajaria de novo para o Algarve, o sofá onde se deitava e que era praticamente só dele, as perninhas em esforço quando se punha de pé na varanda para espreitar o largo, o corpo torcido como um desenho animado quando adormecia de barriga para cima, a sua bolinha de estimação que está guardada algures com as tigelinhas de água e ração e de novo a meiguice, o companheirismo, a inteligência, e mais uma vez o companheirismo.
E a meiguice.

Temos saudades tuas, Mickey.
Mas jamais te esqueceremos.

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